Satisfação em revê-la
Quando alguém se vai, o que fica é a nossa memória sobre a sua personalidade
O luto é uma espaço vazio
Acordei um dia depois da morte do meu avô e voltei a cochilar. Se eu fosse ao banheiro, que fica entre o quarto onde eu dormi essa noite e o quarto que era dele, precisaria encarar o passado e o futuro que agora preenchem aquele cômodo vazio. A cama hospitalar, de ferro, deu lugar a uma cama de solteiro, de madeira. A coberta do Corinthians está secando no varal e o cobre-leito, agora, é uma colcha fininha e florida, que me lembrou as várias coroas de flores que ele recebeu no velório.
O quarto perdeu o som. Não tem mais o ruído do cilindro de oxigênio, nem conversas sobre o horário dos remédios, nem o apito do juiz pela televisão. Quando eu entro no quarto, ninguém mais diz: “Satisfação em revê-la”- e ninguém mais dirá.
No ano passado, quando eu vivia uma tarde com o meu avô no hospital, ele me disse: “Não siga o caminho dos outros, faça o seu próprio caminho. A coisa mais importante que você tem é a sua personalidade.” Benedicto Herculano Ribeiro, Seu Dito, o Campeão, foi um homem de personalidade única, uma pessoa autêntica e 100% original. Agora eu me importo menos com seus grandes feitos e mais com as pequenas lembranças.
Sobre{voar}
Já fazia quase um ano que o Campeão não alimentava os passarinhos e as galinhas e outra pessoa cumpria essa tarefa. Mas ontem, vi três pessoas da família enchendo as mãos no pote de quirera e dizendo: “Os passarinhos. Não podemos esquecer dos passarinhos”. Eu não sei se o medo é de esquecer dos pequenos voadores ou de não receber mais as visitas deles. Mesmo que desde que começou a ficar debilitado meu avô tenha parado de dar de comer aos bichinhos, eu gosto de acreditar que eles seguiram firmes nos últimos tempos, sempre lhe fazendo uma visita ao pé da janela. Eu vi meu avô alimentar um tucano por anos. O bicho vinha pegar banana na sua mão, e seguia sua vida de pássaro livre, selvagem, aventureiro, mas sempre vinha ver o Campeão pela manhã.
Meus avós tiveram cinco filhos e quatorze netos. E nos meus trinta e três anos, eu passei apenas um natal longe da minha família. Se a gente sempre vem pra Minas ver os meus avós e agora seguimos visitando a minha vozinha, será que quando os dois faltarem, seguiremos migrando?
Um velho poeta
Era uma tarde de sexta feira quando meu avô sentou-se na cama do hospital, estufou o peito tirando a máscara de oxigênio e recitou um poema. No final, deu o nome do filósofo e a data da poesia. Eu nunca tinha visto aquilo. Eu nunca soube que ele gostava de poemas. E ele me revelou: “Quando eu era moço, eu tinha um caderninho. Eu lia poesia e frases que eu gostava e anotava ali. Depois decorava um a um.” Naquele dia, tudo o que eu sabia sobre o meu avô virava história. Na cidade é conhecido como trabalhador, grande empresário, homem respeitável. Na minha lembrança é um homem sensível, ex-saxofonista, contemplador de varanda.
Foi o seu Dito que me ensinou sobre o João de Barro
- e tudo o que ele aprendeu foi pela paciência e observação. Na certidão de óbito tem um x assinalando a escolaridade, que diz: “entre o primeiro e o quarto ano do ensino fundamental”. O homem que menos teve acesso à educação na família foi a pessoa que eu mais vi ler livros e foi quem me apresentou a Barsa, coleção que ele tinha muito orgulho de oferecer à família.
Primeira-dama
Meu avô atravessou a vida muito lúcido. Teve um dia ou outro de pequenas variações como efeito de um remédio. Num rápido lapso, quando eu entrei no quarto, ele me olhou e disse: “Sarah Kubitschek, Sarah Kubitscheck.” E logo corrigiu: “Ah, é a Mariana! satisfação em revê-la!”- seguido do seu marcante sorriso. Conheço pouco da história de Sarah mas confesso que, por um minuto, me senti importante por ele não se decepcionar ao descobrir que eu não era uma primeira-dama.
A newsletter
Não terei mais a oportunidade de revê-lo, mas essa foi a maneira que encontrei de homenageá-lo. Essa newsletter nasce como um novo endereço pro Campeão. Se agora ele não mora mais nessa casa, crio esse espaço digital, simbolicamente cadastrado numa nuvem cibernética, pra ele poder seguir vivo, em homenagem, e toda vez que eu vier aqui escrever, é como se estivesse visitando aquele velho poeta.
Aqui, vou falar sobre como vejo a vida pela perspectiva da contemplação, maior legado deixado pelo Campeão.
Satisfação em ter vivido na sua presença, Campeão.
“Eu te amo” é a única expressão que seguirei conjugando no presente.